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É justo as mulheres se aposentarem apenas aos 65 anos, como os homens?

19 dez 2016 - 14h36
(atualizado às 14h48)
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Acumulando o trabalho doméstico e o artesanato, Agnes Milan diz não entender porque terá que se aposentar da mesma forma que um homem
Acumulando o trabalho doméstico e o artesanato, Agnes Milan diz não entender porque terá que se aposentar da mesma forma que um homem
Foto: BBC Brasil

Depois que sai do trabalho, a paulistana Agnes Milan, de 38 anos, pega os filhos na escola, prepara o jantar, põe os meninos na cama, limpa a casa e, já na madrugada, produz as tiaras que vende a R$ 5 na avenida Paulista, em São Paulo.

Dorme às 2h. Acorda às 5h. Seu marido não participa da maioria das tarefas - e ela diz não entender por que poderá ter que se aposentar da mesma forma que um homem.

"Nós trabalhamos fora e dentro de casa. Temos que ser mãe, esposa, companheira. As responsabilidades são maiores."

A dúvida de Agnes é compartilhada por muitas brasileiras.

Igualar a idade de aposentadoria e o tempo de contribuição entre homens e mulheres é um dos pontos da proposta de Reforma da Previdência anunciada pelo governo. Em discussão na Câmara dos Deputados, o texto estabelece um mínimo de 65 anos de idade e 25 anos de contribuição para ambos os sexos.

Hoje, os números são menores para elas: 30 anos de contribuição ou 60 anos de idade contra os 35 anos de contribuição ou 65 de idade dos homens.

O argumento do governo Michel Temer é que as mulheres vivem mais - em média até os 79,1 anos -, e acabam recebendo o benefício por mais tempo. Estabelecer os mesmos limites corrigiria essa distorção.

A justificativa oficial não é consenso entre especialistas. Defendida por parte dos economistas como medida necessária para amenizar o rombo previdenciário, é considerada por outros como ameaça à qualidade de vida das mulheres.

A BBC Brasil conversou com os dois lados. Ambos reconhecem a posição mais vulnerável da mulher no mercado de trabalho, mas discordam na hora de dizer se mexer na Previdência é a melhor forma de atenuar essas disparidades.

L ógica da solidariedade

Para os críticos à proposta do governo, estabelecer os mesmos critérios previdenciários significa aumentar a desigualdade entre os sexos.

Segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílios, do IBGE) de 2015, elas trabalham mais, ganham menos e ocupam vagas piores.

Permitir a aposentadoria mais cedo, dizem, seria um jeito de amenizar as diferenças.

"Estamos quebrando a lógica da solidariedade. Você não tem um grau de cooperação só entre as gerações novas e antigas, mas entre homens e mulheres. Elas têm uma inserção no mercado muito mais instável. Evidentemente a maternidade dificulta", diz a economista do trabalho e professora da UFRJ (federal do Rio) Lena Lavinas.

A extensão da jornada é uma das principais discrepâncias citadas.

Ainda de acordo com os dados do IBGE, as brasileiras trabalham, em média, 55 horas por semana, incluindo os afazeres domésticos. Os homens dispendem 50,5 horas.

Baseadas nesse parâmetro, acadêmicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) produziram um artigo em que defendem que equiparar as regras de acesso à Previdência fará a mulher trabalhar mais.

Segundo seus cálculos, a cada ano as mulheres trabalham, em média, 12% a mais do que os homens. De acordo com a lógica, um tempo mínimo de contribuição de 25 anos, como propõe a reforma do governo, representaria 28 anos de trabalho para as brasileiras.

A mestranda Fernanda Félix e as professoras Luana Myrrha e Cristiane Corrêa escreveram ainda que o desconto de cinco anos concedido hoje nas regras "ainda é insuficiente para compensar a dupla jornada".

Para a economista e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Hildete Melo, a matemática da expectativa de vida, segundo a qual as mulheres são privilegiadas porque vivem mais, é enganosa. O cálculo não só exclui as tarefas domésticas, diz a professora, como ignora a reprodução.

"Além de carregarmos um filho na barriga, quando ele coloca a cabeça no mundo é tudo responsabilidade feminina", diz Melo, editora da revista Gênero, da UFF, onde o trabalho será publicado.

Filhos e salários menores

Ser a principal responsável pelas crianças também prejudica as brasileiras na busca e na manutenção do emprego, afirma Melo.

Em 2015, havia cerca de 54 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho - 69% eram mulheres.

A professora diz que a grande presença feminina no mercado informal também é alimentada pela dificuldade de conciliar família e carreira.

Desempregada há um ano, Elineia de Moura, de 27 anos, perdeu várias entrevistas porque o filho estava doente. Enquanto não arranja uma vaga, "se vira" como pode.

"Faço bolo, faço torta, lavo para fora. Troco com as vizinhas a roupa que não serve mais, troco arroz por açúcar. A gente vai se virando."

Temendo deixar os filhos com desconhecidos enquanto o marido procura emprego, a vendedora Agnes Milan prefere não ter carteira assinada. Assim pode escolher seus horários e faltar quando for preciso.

"Tenho um menino de três anos e uma menina de quatro. Por eles, não aceito algo fixo. Se ficam doentes, vou prejudicar os patrões. Quem nessa crise vai querer isso?"

Sem registro, nem Elineia nem Agnes contribuem para o INSS. Esse dinheiro faria muita falta, dizem.

Vulnerabilidade

Com tantas mulheres às margens da formalidade, o risco de serem maioria entre os que não conseguem se aposentar é grande, afirma Jorge Félix, professor convidado do USP e autor de vários livros sobre o tema.

Segundo ele, a chance delas terem um emprego formal cai a partir dos 25 anos.

"Os dados mostram que a vulnerabilidade da mulher vai aumentando de acordo com a idade. Aos 60 anos, só 10% estão no formal. O fato de igualar as idades mínimas intensifica esse problema, e cresce o risco de ela não se aposentar."

Mesmo que recebam o benefício no futuro, o tipo de posto e os salários são problemáticos no presente, dizem os especialistas.

A desempregada Elineia de Moura perdeu várias entrevistas porque o filho estava doente
A desempregada Elineia de Moura perdeu várias entrevistas porque o filho estava doente
Foto: BBC Brasil

A professora Hildete Melo, da UFF, lembra que um dos bolsões do emprego feminino é a função de doméstica.

"Ainda é uma das principais formas de trabalho das brasileiras. 93% das empregadas são mulheres."

Melo destaca ainda a área de serviços, que recebeu muitas mulheres durante sua expansão nos governos petistas e é marcada por salários de até 1,5 salário mínimo. Elas se tornaram cabeleireiras, manicures, auxiliares de limpeza, às vezes entrando no mercado formal por meio desses cargos.

Ao ocupar postos menos prestigiados, a vulnerabilidade das mulheres aumenta, diz Maria Rosa, socióloga e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas.

"São pessoas que estão à beira do formal. Grande parte do tempo elas ficam na informalidade, sem direito a auxílio desemprego e outros benefícios."

Parte da "legião de manicures" citada por Rosa, Naelma Lima tem 26 anos e só contribui para a Previdência há um ano.

Ela tem um pequeno salão com a tia e paga como MEI (Microempreendedor Individual) um valor para o INSS de R$ 50 mensais. O que a atraiu foi o fato de ter algum seguro, como pensão por morte ou aposentadoria por invalidez, já que sua profissão não lhe dá garantias.

"É um ofício em que a pessoa sente muita dor nos braços, tem tendinite, não dá para ficar muito tempo."

Além de não oferecerem proteção às trabalhadoras, essas vagas pagam mal, o que joga a média salarial para baixo. Segundo o IBGE, a mulher recebe, em média, 76% do rendimento dos homens. No mercado informal é ainda menos: 68%.

Elas também aceitam pagamentos menores para a mesma função, acrescenta a professora de economia da PUC-SP Anita Kon. O motivo? Os filhos.

"Está aumentando o número de famílias que são chefiadas por figuras femininas. E isso agrava a situação, porque elas ficam sozinhas com as crianças e então aceitam trabalho com menor remuneração, sem carteira. Não podem ter muitas exigências."

Corrigir pela Previdência?

A professora Anita Kon faz parte do grupo de economistas que considera necessário ter regras únicas para todos. Para ela, se a reforma não for posta em prática, nenhum brasileiro vai receber sua aposentadoria.

"O que a gente debate agora não é o mundo que gostaríamos de ter, mas o mundo que a gente consegue ter para a Previdência se efetivar. Cada membro da sociedade vai perder alguma coisa."

Ela concorda que as mulheres podem ser mais prejudicadas, dadas as desvantagens citadas acima, mas não acha que mudar a idade mínima vá solucionar o problema. A maneira mais adequada, diz, seria por meio de políticas públicas, como o aumento do auxílio-maternidade ou a melhora do sistema de creches.

As diretrizes empresariais também precisariam ser repensadas, opina o professor da FEA-USP José Roberto Savoia, para que as profissionais fossem mais valorizadas.

Savoia considera a equalização entre os sexos não só necessária, mas razoável.

Ele explica que a renda menor das mulheres é compensada por sua maior expectativa de vida. Enquanto elas ganham 24% menos dos que os colegas homens, costumam receber o benefício por um tempo 25% maior - a média deles é de 16 anos após a aposentadoria e a delas, 21 anos.

"Elas acabavam recebendo por um prazo extremamente longo. Dessa forma, você produz um maior equilíbrio da renda dos dois sexos."

Savoia destaca a importância de políticas públicas que promovam as mesmas oportunidades de carreira. Caso não haja um compromisso do governo de diminuir os prejuízos para o público feminino, ele vê um quadro social desfavorável para a mulher.

Envelhecimento

Para parte dos entrevistados, esse cenário desfavorável consistiria em brasileiras que, trabalhando mais e em condições ruins, teriam menos filhos. Isso aceleraria o envelhecimento populacional do país e repercutiria na própria Previdência - com mais idosos exigindo a aposentadoria e menos jovens ativos para mantê-la.

"Vai ser um tiro no pé. Com a aprovação da reforma, as mulheres já terão menos filhos do que estão tendo, porque vão ter a perspectiva de trabalhar sem parar e até de não se aposentar", diz Jorge Felix.

Segundo dados do IBGE, a taxa de fecundidade no país no ano passado era de 1,72 filho por mulher. A partir de 2010, o indicador começou a se aproximar dos de países desenvolvidos. Hoje, fica pouco acima da taxa de fecundidade total dessas nações entre 2010 e 2015: 1,67.

Naelma Lima contribui para a Previdência por garantias como pensão por morte ou aposentadoria por invalidez
Naelma Lima contribui para a Previdência por garantias como pensão por morte ou aposentadoria por invalidez
Foto: BBC Brasil

A diferença é que, no chamado mundo desenvolvido, a baixa fecundidade segue combinada com condições estruturadas de vida. No Brasil, diz o professor da Unicamp Ricardo Antunes, estamos mais para uma combinação estranha de "desenho demográfico europeu com a tragédia social dos países do sul".

Os filhos da vendedora Agnes Milan poderiam ter sido dois a menos nessa conta. Se tivesse que escolher hoje, a vendedora não sabe se teria engravidado. A primeira gravidez foi desejada. Na segunda, em 2012 e com a crise se aproximando, chorou por três dias logo após fazer o teste.

Mais do que a vida reprodutiva das mulheres, as transformações na Previdência podem devolvê-las mais cedo ao lar, opina a economista e professora da UFRJ Lena Lavinas.

Com mais brasileiros não conseguindo se aposentar ou na labuta até idade avançada, são elas que cuidarão dos maridos e pais na velhice, diz a professora.

Agnes diz se identificar com a situação.

"Vou ter três crianças em casa, incluindo meu marido, que tem 65 anos. Ele não consegue um emprego. Vou precisar cuidar dele também, porque com a ajuda do governo não dá para contar. Tudo vai depender de mim", afirma, enquanto continua colando miçangas na tiara em produção.

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