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Carros usados saem mais caros que novos na Venezuela

Comércio automotivo se estabelece em um ambiente de alta demanda e de inflação desenfreada

2 ago 2013 - 08h38
(atualizado às 08h39)
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Para comprar um veículo novo venezuelano tem que enfrentar uma lista interminável de espera que facilmente supera um ano
Para comprar um veículo novo venezuelano tem que enfrentar uma lista interminável de espera que facilmente supera um ano
Foto: BBC News Brasil

Comprar um carro novo na loja, estreá-lo e castigá-lo pelas ruas esburacadas da cidade para aumentar seu valor em no mínimo 50% não só é possível, mas também algo normal na Venezuela.

Em um país onde os automóveis não perdem valor com o uso, onde a gasolina é muito barata e onde o controle do câmbio dificulta a importação, o comércio automotivo se estabelece em um ambiente de alta demanda e de inflação desenfreada. Tudo amplificado, sobretudo, pela escassez geral de carros.

Para comprar um veículo novo, na melhor das hipóteses, o venezuelano tem que enfrentar uma lista interminável de espera que facilmente supera um ano. No caso de algumas marcas, isso sequer acontece. A resposta da concessionária é simplesmente "existe muita gente esperando e os carros não chegam".

O melhor negócio, então, é comprar um carro novo para vendê-lo como usado no dia seguinte, pelo dobro do valor. O cenário é perfeito para o surgimento de máfias dedicadas a cobrar comissões ilegais. Como consequência, os motoristas venezuelanos têm um mercado "dinâmico" e inflacionado de veículos usados: mal se anuncia uma venda, o carro "some" das mãos de seu dono.

Basta passar na frente de uma concessionária qualquer para comprovar uma realidade desoladora: estão vazias. Os veículos que aparecem já estão reservados e vendidos, só aguardando a chegada de seu dono.

Como esse panorama, os preços disparam. Os carros se tornaram um meio para o venezuelano proteger seu dinheiro de uma inflação altíssima: 40% ao ano.

Chineses e iranianos

Em junho, a associação da indústria automobilística da Venezuela (Cavenez) anunciou pouco mais de 120 mil unidades vendidas, no quinto ano consecutivo de queda de vendas. O número é 3,6% menor do que o mesmo período do ano anterior e do quase meio milhão de unidades vendidas em 2007.

Também é menor que os 128 mil do complicado ano de 2002, ou dos 157 mil de 2001, anos anteriores ao estabelecimento do controle de câmbio. Atualmente, algumas marcas afirmam que tudo o que vendem é produzido na Venezuela, já que não conseguem as licenças para importação.

Os fabricantes se queixam de que, por causa do rígido sistema de controle cambial do país, o governo não entrega quantidades suficientes de moeda para possibilitar a importação de peças destinadas à montagem dos carros, algo que limita a produção.

Já o presidente Nicolás Maduro culpa a especulação das concessionárias, montadoras e importadores e tenta copiar a iniciativa do ex-presidente Hugo Chávez para o frango, leite e papel higiênico, quando estes começaram a desaparecer das prateleiras dos supermercados: o controle de preços por força de lei.

Outra ideia de Maduro está na "produção própria": modelos de origem chinesa e iraniana montados em território venezuelano e vendidos pelo governo a "preços solidários".

O ministro da indústria, Ricardo Meléndez, anunciou recentemente que o banco estatal avaliará milhares de solicitações de financiamento de compra de automóveis chineses da marca Chery ou da iraniana Venirauto.

Entretanto, a emissão de créditos está muito aquém da demanda. Durante o primeiro mês de funcionamento do programa estatal, o número de carros distribuídos foi de apenas 300.

Paciência

Ironicamente, comprar um carro novo é a opção de venezuelanos que não podem pagar pelo alto preço do usado. Os que decidem esperar um ano para a chegada do carro da fábrica o fazem, supostamente, para evitar o custo da entrega imediata que, juntamente com a falta de oferta, faz multiplicar o preço dos carros de segunda mão.

"Já não temos listas (de espera). São tão poucos os carros que chegam da montadora que não podemos nos comprometer com algo que não vamos cumprir nem em dez anos. Se tenho mais de mil pessoas esperando, para que vou agregar mais alguém?", comenta à BBC Mundo um funcionário de uma concessionária da Toyota.

A loja exibia um Corolla, o modelo mais cobiçado do país: "Esse já é de uma embaixada", explicou o funcionário. No primeiro semestre do ano, de acordo com a Cavenez, foram montados no país 37 mil veículos, 37% menos que no ano anterior. Mas a demanda, estimam especialistas, é de 300 mil carros por ano.

Em uma concessionária da Chevrolet, um jornalista, que preferiu não divulgar o nome, diz que sua mãe tem visitado semanalmente o lugar, há três meses, para perguntar se o carro dele já chegou.

A concessionária prometeu o carro em cinco meses e exigiu que o cliente solicitasse crédito para o carro, que na época da primeira negociação custava 230 mil bolívares (quase R$ 83,5 mil).

Quando chegar, o carro provavelmente custará mais caro. O mesmo modelo usado, ano 2012, raramente custa menos de 400 mil bolívares (R$ 145 mil). Mas a linha de crédito obtida, válida por três meses, está prestes a vencer. Com isso, o cliente terá de pedir novo empréstimo se não quiser perder o lugar na lista de espera.

Para outros compradores, a situação é ainda pior. Um homem que pediu anonimato à BBC Mundo contou que, mesmo com suas economias em dólares fora do país, não conseguiu aprovação de seu crédito para comprar um carro. E na Venezuela, mesmo com dinheiro para pagar à vista, a pessoa só pode ter o nome incluído na lista de espera das concessionárias se pedir um empréstimo.

'Vendedores ambulantes'

Quem não tem tempo e paciência de esperar nas lojas volta-se ao mercado de usados, onde também não há oferta suficiente e os preços podem ser mais do que o dobro do que o de um modelo novo.

O "comércio informal" opera com os chamados "buhoneros" (vendedores ambulantes). Um deles é Pedro, que, com oito anos de experiência nesse mercado, oferta seis carros em uma praça de Caracas. Tenta vender uma caminhonete 2005 por 350 mil bolívares (ou R$ 127 mil) e um utilitário semidestruído por 80 mil bolívares (ou R$ 29 mil).

"Esse está fino, até ar-condicionado tem. Dê uma arrancada pra você ouvir", disse a um curioso que perguntava pelo carro mais desgastado dos que estavam expostos na rua.

Segundo Pedro, além da pouca oferta, os preços são distorcidos porque "há um boato de que o dólar vai subir" e porque o mercado funciona segundo o dólar paralelo, cuja cotação é estimada em cinco vezes acima da taxa oficial.

O motorista Nelson, por exemplo, diz que comprou seu carro usado, um modelo japonês, em 2009 por 50 mil bolívares e acha que vale hoje 280 mil bolívares.

Internet

A internet também é um fértil mercado para classificados de carros. Um ávido usuário é Daniel, taxista que troca de carro quase anualmente. No final de junho, ele vendeu o seu um dia depois de tê-lo anunciado na web, por 130 mil bolívares.

Para substituí-lo, comprou um por 100 mil bolívares (R$ 37 mil), mas "o barato saiu caro" — ele não conseguiu repor o ar-condicionado do carro nem "consertar seus barulhos". Acabou decidindo vendê-lo por 130 mil bolívares (R$ 47,5 mil) , algo que conseguiu em dois dias. Agora, aguarda a chegada de seu próximo carro, comprado também pela internet, poucas horas após ter sido anunciado e também por mais do que ele acha que o veículo vale de verdade.

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